Victória Hugentobler Valez
Algumas coisas são inevitáveis. Diferente dos eufemismos normalmente usados com crianças para tratar de questões que os próprios adultos temem, graças ao meu pai e sua didática realista, não me contaram histórias sobre passeios, viagens e lugares melhores.
Aprendi desde cedo que as coisas são finitas e que a morte é natural e inevitável, então quando meus pais me acordaram às nove da manhã de um domingo me pedindo para pegar o trem e voltar para Porto Alegre porque a minha vó tinha acabado de morrer, suspirei aliviada. Na manhã anterior os médicos haviam comentado uma mínima melhora em seu quadro clínico, apesar do inchaço em seu rosto e seus dedos e a cor amarelada de sua pele me dizerem justamente o contrário. Não era a notícia que estava esperando receber, mas sim a que mais desejava ouvir toda vez que lembrava que a clínica geriátrica que lhe aguardava fora do hospital não era nada melhor.
Sei que falar que me senti aliviada com a morte da minha própria avó soa horrível aos ouvidos da maioria das pessoas, considerando que nossa cultura trata a morte como a coisa mais horrível que pode acontecer a alguém. Os olhares de reprovação e julgamento que recebi por não parecer desolada ao ver o caixão me perseguiram durante muito tempo e me fizeram sentir culpada por não ter chorado com toda a situação — e eu bem que tentei. Tentei sentir a tristeza que todos esperavam que eu sentisse, mas depois de tantos anos a vendo viver, não consegui fingir que não achava que aquilo era a melhor coisa que poderia ter acontecido; não quando meu problema não foi ter que aceitar sua morte, mas sim ter que aceitar todo o processo degenerativo que veio antes.
Todos precisam aceitar algo que não se é capaz de mudar — as limitações pessoais, o resultado de um jogo de futebol, uma situação que não seguiu de acordo com os planos. A sensação é parecida com a que tinha quando ficava gripada e acabava de cara com uma colher gigantesca de paracetamol líquido — mesmo não querendo colocar uma única gota daquilo na boca, acabava tendo que engolir.
É claro que eu não queria que a minha avó simplesmente morresse; mas depois de crescer vendo seu corpo e sua mente ficando debilitados até o estado vegetativo, como eu iria querer que ela continuasse — entre muitas aspas — viva? A morte, ainda que doa, é perfeitamente aceitável, mas o Parkinson despertou em mim pela primeira vez a resignação. O Parkinson não tem cura e não tem explicação médica que defina a sua origem. O tratamento não traz nenhum sinal de melhora e apenas tenta retardar os sintomas e a debilitação inevitável. Não há nada que se possa fazer a respeito a não ser sentar no carrinho do trem fantasma, apertar a mão da pessoa sentada no banco ao lado e torcer para que o passeio não seja muito longo nem muito horrível.
Fiquei confusa quando meu avô parou de trabalhar e nós duas não podíamos mais passar o dia sozinhas brincando com tudo o que havia na cozinha, e aí me explicaram uma doença que só compreendi ao longo dos anos ao vê-la em prática. Assisti aos copos de vidro se tornarem perigosos e eventualmente serem substituídos por copos plásticos que não poderiam machucar ninguém caso escapassem de suas mãos trêmulas. A resignação queimou meu estômago como uma gastrite desgraçada quando me vi impotente diante das alucinações e da perda de memória ao longo dos anos, quando eu não conseguia convencê-la de que não havia ninguém vestido de preto na garagem ou conforme os anos passavam, eu crescia, e sua mente não sabia mais dizer quem eu era, mesmo sendo sua única neta.
Depois de tanto tempo tendo que me resignar de ver Dona Laura em uma cama hospitalar com um colchão especial que garantia que seu corpo se mexesse o mínimo para que a falta de movimento não criasse feridas novas na sua pele, sua morte jamais conseguiria me atingir mais do que ter que aceitar que era impotente. Ter que sentir o cheiro enjoativo do antisséptico da clínica e conversar sem resposta, torcendo para que ainda houvesse um resquício de consciência nela que reconhecesse a minha voz, a única coisa que não havia mudado tanto ao longo dos anos, e saber que não havia nada que pudesse fazer a respeito.
Com o perdão da palavra, a resignação é uma bosta. Não importa se é pela colherada cheia de paracetamol ou porque nem sempre se pode salvar as pessoas.
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