Rogério Heckler dos Passos
É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã
(Dado Villa-Lobos – Renato Russo – Marcelo Bonfá)
Foi muito bom – e como foi!- aquele dia que a Jaky me beijou pela primeira vez. Queria ficar com ela, tê-la comigo todo tempo. Afinal, não é todo o dia que tu consegue uma namorada parecida com a Letícia Spiller! Mas foi bom – e como foi! – no dia em que a mesma Jaky me ligou de outro continente dizendo que tinha me trocado por um espanhol. O fato de querer ficar com ela, que era bom, virou um tormento que me fez chorar dois dias seguidos feito criança. Nessas horas, a razão vai pro espaço e tu faz de tudo pra não perder o objeto amado: fui à Espanha atrás dela pra tentar recuperá-la, não perdê-la. Antes de viajar, fui até a casa dos seus pais em Nova Prata pagar um queijo da colônia. Junto com o queijo, levei na mala vários cadernos que enchi contando as desventuras de estar sem ela. Tudo para ver se amolecia o seu coração. O resultado foi que o queijo não passou na alfândega (foi cruelmente queimado pelos agentes sanitários) e que a Jaky nem deu bola pros cadernos em que me esvaía em desespero.
Mas no fim das contas não morri e a perda da Jaky foi reposta por outras Jakys com outros nomes (e muitas vezes nem tão parecidas com a Letícia Spiller).
Porém com a Valentina foi diferente. Com ela eu morri e me perdi.
Quando o exame do líquido amniótico na placenta da mãe indicou que ela tinha a Trissomia 18 ou T18 (conhecida como síndrome de Edwards), o que era bom – a expectativa da sua vinda – começou a ficar também doloroso. Era difícil imaginar que aquela criaturinha que vinda chutando com tanta força a barriga da mãe poderia ter um problema tão grave. Normalmente as crianças com T18 são abortadas espontaneamente. Mas a Valentina fazia questão de vir ao mundo. Por isso chutava com gosto a barriga da mãe quando eu conversava com ela.
A ecografia cardíaca confirmou a consequência mais temida da síndrome: após o nascimento o sangue venoso, que é rico em gás carbônico, se misturaria com o sangue arterial, rico em oxigênio. Isso porque a membrana que separa os ventrículos esquerdo e direito não existia. O resultado do exame equivalia a uma sentença de morte. Soube pela internet da possibilidade de ser feita uma cirurgia cardíaca que só era realizada no Brasil por um médico em São Paulo, com alguma possibilidade de êxito. Porém mesmo assim a chance de sobrevivência continuaria muito pequena – quase inexistente – devido às seqüelas advindas da má formação cromossômica: problemas respiratórios, digestivos, oculares, alto grau de retardo mental, dificuldade de fazer funcionar os rins etc. Dificilmente ela viveria mais de dois dias, disse o médico.
O que mais me mortificava eram as notícias da internet que mostravam alguns pais lutando heroicamente para aumentar a sobrevida das crianças: viagens, com enorme sacrifício, até São Paulo para conseguir uma cirurgia com o médico que operava crianças com a síndrome. O pós-operatório. A volta pra casa – nos pouco casos em que a criança saia do hospital – com o tubo de oxigênio e toda a parafernália para manter o bebê vivo. Os casos dos pais que tiveram de se mudar para perto do hospital. O revezamento em turnos dos pais. O eterno sobressalto advindo do risco de a criança de uma hora para outra ficar roxa e parar de respirar. As diversas operações nos meses seguintes. Os tristes e emocionados textos postados – geralmente dois ou três meses depois do nascimento – informando que há uma nova estrelinha no céu. Todos eles pais fortes, guerreiros, que lutavam pela vida, que amam seus filhos, que acreditam em um milagre divino. Todos boas pessoas, admiráveis, cujos relatos eu lia com lágrimas nos olhos, sempre de madrugada para a Miriam, mãe da criança, não ver e assim sofrer mais.
Literalmente me retorcia na cadeira e me perguntava por que eu não cobrava ânimo e fazia tudo isso? Por que eu não lutava pela vida da minha filha? Por que eu aceitava a palavra dos médicos que diziam unanimemente que não havia solução? Por que não me tocava pra São Paulo e pedia pelo amor de Deus pra ser atendido pelo médico que fazia a operação no coração das crianças com a síndrome?
Simplesmente não conseguia dar esse passo. Era um fraco? Um preguiçoso? Não amava minha filha? Queria me livrar do transtorno de ter um filho deficiente?
Só consegui ter um pouco de paz quando uma voz interior me lembrou da Jaky e do meu desespero para não perdê-la: o que adiantaria eu ir até Nova Prata pegar o queijo da colônia se os agentes da alfândega iriam queimá-lo? O que adiantaria expor a público o meu diário de desventuras se o conteúdo só prorroga a agonia, o sofrimento, o desgaste daquilo que já foi e que não pode mais ser, que não tem solução?
Daí vinha outra voz interior e dizia: aqui estamos tratando da vida de uma criança, não de um namorico qualquer. E a primeira logo respondia: cara, isso é uma mistificação judaico-cristã que diz que devemos lutar pela vida de qualquer maneira, mantendo-a artificialmente. Por que prolongar uma vida inutilmente, fazendo todos sofrerem? Que ética cristã de merda é essa que faz todo mundo sofrer quando a criatura que estamos tentando manter a vida só queria parar de sofrer e fazer sofrer aqueles que a amam? Que egoísmo é esse de querer manter a pessoa junto de si de qualquer modo?
A primeira voz ganhou de goleada. A música do Legião Urbana já não me dizia nada: não precisava amar como se não houvesse amanhã. Não havia amanhã. E eu me recusava a forjar esse amanhã artificialmente. Eu só precisava amar. Nada mais.
E amei a Valentina quando ela nasceu. Ficava com ela todo o dia na UTI neonatal. A mãe, por estar debilitada, não podia ficar todo o tempo. As enfermeiras disseram que a presença dos pais era mais importante que os tubos e sondas de oxigênio.
Ficava com ela no meu colo quase todo o tempo. Percebi que ela gostava de ficar como as índias levavam seus filhos: peito contra peito, com a cabecinha em meu ombro. Sempre cantava pra ela as músicas da Arca de Noé do Vinícius de Moraes, que eram as que eu sabia de cor, principalmente esta:
Menininha, que graça é você,
Uma coisinha assim começando a viver
Fique assim, meu amor, sem crescer
Porque o mundo é ruim, é ruim e você
Vai sofrer de repente uma desilusão
Porque a vida é somente o seu bicho-papão
Quando cantava, ela ficava me olhando fixamente. Por vezes conversava uns resmunguinhos que eram só dela. Depois dormia.
Valentina deu seu último suspiro nos meus braços um dia e 23 horas após ter nascido. Apagou como uma velinha de chama bem fraquinha. Sem sofrimento e sem paz.
A minha pequena Valentina aprovaria a minha decisão de não prorrogar o improrrogável? Nunca pedi desculpas nas vezes em que fui visitá-la no cemitério. Mas de vez em quando volta aquela voz que questiona se eu fiz a coisa certa. Mas logo a afasto pra bem longe. Pois se eu não o fizesse morreria e me perderia de vez.
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