Kadija Medeiros - 2019/2
Fui incapaz de ler Kafka. Claro que eu sei que Kafka tem muitas obras. Mas eu achava que tinha que ler a história da barata. Vocês poderão me dizer que ele nunca falou que Gregor de fato vira uma barata, em Metamorfose. E vocês vão me desculpar, mas ele não precisaria dizer. Eu conheço uma barata. O que ele descreve é uma barata. E eu tenho pânico de baratas. Fui incapaz de ler Kafka porque, a cada página que evoluía na leitura, eu sentia mais e mais repulsa. Em determinado momento, a repulsa venceu a obra e não só eu desisti de folhear o livro como o entreguei a algum amigo, pedindo pra que ele o mantivesse de mim o mais longe possível. É esse o nível de ojeriza que aquela descrição detalhada desse inseto asqueroso me causa. Até hoje sigo sem saber exatamente do que trata a história - já tentei ler sobre ela, e só consigo focar numa barata gigante.
Logo na primeira semana trabalhando em uma loja, bem no meio do corredor, entre sapatos veganos expostos no chão, em frente a um dos imensos espelhos dispostos à parede: um cadáver desse bicho rastejante. Ou o que parecia ser um cadáver. Tenho mais pânico de baratas supostamente mortas do que das obviamente vivas. Com insetos vivos, num geral, eu sei não-lidar. Eles vivem a vida deles, eu vivo a minha vida, eles passam ser me ver, eu finjo que não os vi de volta, é uma relação de cortesia mútua. Todos felizes. Com insetos falecidos, por outro lado, a gente precisa lidar. Nesse caso específico, em algum momento eu teria que limpar a loja. E eu não podia deixar o tal cadáver ali, pra qualquer cliente ver. Além do mais, baratas são mau-caráter: elas se fingem de mortas, nos aguardam imóveis, até que, à mínima aproximação das cerdas de uma vassoura, elas saem em disparada, sem nem decidir conscientemente que direção seguir, podendo desavisadamente atacar o ser humano à frente.
Mas eu tinha sido empregada recentemente. Era uma adulta madura e responsável. Não podia permitir que a maldita, temendo a aproximação de uma senhora menos atenta, resolvesse embalar-se em sua direção, subindo até um casaco sendo experimentado, no momento em que ela se vira para conferir seu reflexo. Toda essa imagem mental é criada enquanto eu miro, com uma vassoura nas mãos, o corpo inerte no piso. Naturalmente, minhas mãos estão suadas, embora geladas. E o coração bate tão rápido que eu sou capaz de ouvi-lo pela cabeça latejante e senti-lo pelo sangue circulando às pressas por cada artéria. Toda a coragem que eu pude reunir foi suficiente pra me colocar a um metro de distância desse inseto repugnante. Para qualquer outro avanço, eu estava paralisada.
É diante dessa cena que se materializa ao meu lado o dono do lugar. Já me sentindo essencialmente ridícula, os olhos cheios de lágrimas, eu tento explicar a situação. Busco, no fundo do cérebro, palavras que comecem a justificar uma barata entre sapatos de pano e uma vendedora congelada à beira do pranto. Mas meu corpo não consegue articular qualquer palavra. Sigo ali, boquiaberta e em completo silêncio. Desculpando-se pela insensibilidade, ele ri. Aparentemente, não é uma falha imperdoável não saber lidar com insetos rastejantes. Ainda entre contidas risadas, ele me conta a história da antiga gerente da casa. Ela compartilhava da minha fobia, talvez em um nível mais preocupante. Meu chefe frisou que, certa feita, logo após uma dedetização, pelo menos uma dezena de baratas estava espalhada pelo chão, outras tantas escapavam correndo pela porta. E ela, a gerente, sentada no balcão, chorava, arrancando os cabelos. Literalmente, puxando e arrancando tufos de cabelo da cabeça.
Enquanto ele despretensiosamente me relata essa situação caótica, eu penso que talvez eu não precise então ser tão destemida para ser boa funcionária. Talvez eu possa aceitar a vulnerabilidade que me acomete frente a um ser tão aparentemente insignificante, numa fraqueza tão clichê. A mulher administrava todo um comércio e, apesar de toda a responsabilidade do cargo, não precisava lidar com as baratas. Mais importante, ela não precisava superar uma fobia para ser considerada hábil para a posição que ocupava. Se o medo dela não a definia, talvez o meu medo também não me defina. Todos temos nossas próprias fraquezas. Sejam baratas, sejam ratos - como mais tarde descobri ser o caso do nosso chefe -, sejam interações sociais, quem sabe não são elas que nos fazem humanos? Lemos o tempo todo que devemos seguir em frente, superar nossos medos, não desistir. Mas, se nos conhecemos o suficiente, poderíamos escolher que batalhas enfrentar, e que lutas são pesadas demais e ultrapassam nossos limites. Eu passei muitos anos acreditando que devia ultrapassá-los todos, mas tinha uma barata no meio do caminho. No meio do caminho, tinha uma barata, e talvez eu possa manter pra sempre o Metamorfose tão longe quanto possível e nunca descobrir o que efetivamente acontece com Gregor.
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