Vinícius Festa Rigo
2019/2
“É normal um vagão se desligar do trem, às vezes é necessário, tá tudo bem”, foi o que minha psicóloga me disse na primeira sessão da terapia. Haviam sido onze anos sonhando, quase diariamente, com o momento em que eu iria sair de casa, morar sozinho, passar no vestibular e começar a fazer Medicina; mas um dos vagões do trem acabou se desprendendo em uma das curvas.
Após a formatura do ensino médio, eu saí de casa, fui morar sozinho e até passei em uma universidade de Santa Catarina, mas resolvi tentar mais um ano o vestibular no Rio Grande do Sul, e foi no primeiro mês desse novo ano que o vagão resolveu se desprender. Logo nas primeiras semanas de cursinho, as aulas de literatura, com todas as divagações existenciais, análises psicológicas e retratações imagéticas de épocas remotas, pareciam ser muito mais interessantes que as monótonas aulas conceituais de biologia, estudar português e todas as estruturas organizacionais da língua era muito melhor do que as fórmulas incompreensíveis de química e, com toda certeza do mundo, escrever redação e pensar sobre problemáticas sociais (mesmo naquela estrutura argumentativa sólida) era demasiadamente mais fácil do que fazer contas de matemática (elas, na verdade, não faziam sentido algum).
Cerca de um mês depois do início das aulas, aquele desejo de estudar órgão por órgão, célula por célula, tecido por tecido, as doenças e todos os possíveis tratamentos já se mostrava quase irrisório diante da curiosidade que eu tinha por desbravar um novo livro ou desenvolver uma nova redação; mas, mesmo assim eu iria ser médico. Eu queria fazer medicina desde os seis anos, “como assim algo pode ser mais interessante que o corpo humano? Isso não existe!”, “as pessoas não mudam de ideia do nada, e ainda mais para fazer uma coisa que nunca foi cogitada, vai fazer medicina, sim”, foram alguns pensamentos que conturbaram a minha cabeça por alguns dias.
Tolice minha achar que um sonho de infância não sofreria alterações se até minha concepção sobre a vida já havia mudado. O Vinícius de seis anos queria salvar todo mundo, criança às vezes tem esse poder imaginativo de achar que não existe limite para as coisas que o ser humano consegue fazer, mas o Vinícius de doze anos percebeu, depois de perder a melhor amiga em um acidente de carro, que, na verdade, seria impotente perante à morte e que não iria conseguir salvar todo mundo. Ignorância minha achar que permanecer sólido era melhor do que aceitar a mudança que estava estampada na minha cara. Mas, normalmente, a mudança assusta.
Aceitar que uma situação não é mais favorável e que precisa ser mudada costuma ser difícil, mas por que tão difícil? Às vezes nem mais as papilas gustativas apreciam o sabor do café, mas continuamos insistindo em não mudar a marca. O congestionamento do trânsito já virou rotina, mas aparenta ser melhor seguir na rotina e aceitar os cinco minutos de atraso do que tentar um novo trajeto. Talvez tenhamos nos acostumado tanto com o nosso cantinho apertado, que mudar para um lugar mais espaçoso soe muito intimidador.
“Eu não quero mais fazer Medicina” foi o que eu falei, com os olhos cheios de lágrimas, pra minha mãe, após sair da primeira consulta com a psicóloga e aceitar que eu precisava de uma mudança. Hoje, eu percebo que ter deixado o vagão da Medicina soltar do trem da minha vida foi a melhor coisa que eu poderia ter feito; ele já estava pesado demais e teve que ficar em uma das curvas.
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